sábado, janeiro 03, 2015

Os Dez mandamentos e as visões teológicas acerca da Lei. (Subsídio para a Lição Bíblica)

Neste trimestre, a revista Lições Bíblicas da CPAD abordará o ensino dos Dez Mandamentos, sendo que há duas lições introdutórias acerca do Pentateuco e acerca da relação entre Lei e Graça. A revista tem comentarista o teólogo Esequias Soares, respeitado erudito assembleiano.

É importante ressaltar que o estudo dos dez mandamentos, em especial a do papel da Lei de Deus para o crente hoje já foi foco de inúmeros debates, e por mais que não pareça, há diferentes visões dentro do mundo evangélico conservador acerca da relação do crente e da Lei de Moisés (o que também inclui os dez mandamentos). Esse artigo visa elencar as principais visões teológicas de maneira sucinta e não exaustiva, visando fornecer um subsídio auxiliar para as lições 1 e 2 desse novo trimestre. Há outras obras que tratam com mais detalhes as diferentes linhas teológicas acerca do papel da Lei em relação a graça que o leitor pode pesquisar com afinco (1). Vejamos, então, os pontos de vista propriamente ditos:

1. A Perspectiva Luterana: Lutero tinha uma visão bem peculiar acerca da relação entre a Lei, e o Evangelho, sendo que praticamente formulou seu sistema de teologia em um contraste da Lei e Evangelho, influenciado pela soteriologia apresentada pelo apóstolo Paulo na Epístola aos Romanos. Para Lutero, a Lei era santa e boa, porém demanda algo que o ser humano comum não pode exercer: boas obras perfeitas. Portanto, o propósito doador da Lei não era visando simplesmente a santificação, mas como um instrumento para humilhar o ser humano pecador, manifestando assim, o seu pecado, deixando-o sem saída e assim, apontando para Cristo, a ser recebido pela fé. Assim, vemos que no âmago de seu pensamento, existe a questão da doutrina da Justificação pela Fé, tão preciosa para Lutero.  Mas então, como fica a questão das boas obras e dos dez mandamentos? No pensamento Luterano o cristão não está mais sobre Moisés, logo, ele não está mais debaixo da Lei, pois isso implicaria estar debaixo da maldição da Lei de Moisés, mas sob a Lei de Cristo (Cf. Gl 5.18; Rm 6.14,15; 1 Co 9.20). O Cristão, portanto não é responsável a obedecer a Lei de Moisés de maneira imediata, porque sua forma e estrutura foram dados para o povo de Israel, mas sim a Lei eterna de Deus como expressa por Cristo e pelos apóstolos, debaixo da orientação do Espírito Santo (sendo que muita da Lei de Moisés é incluída na Lei de Cristo). Com isso, não se rejeita os Dez mandamentos, mas se pensa nestes como um reflexo que contém princípios válidos para o crente atual, pois refletem a Lei eterna de Deus. O próprio Lutero diz em seu Catecismo Maior que "quem entende os Dez Mandamentos bem e por completo entende a escritura inteira, de modo  que pode aconselhar, ajudar, confortar, julgar e decidir em todas as questões, tanto no plano espiritual quanto temporal, podendo ser juiz sobre doutrinas, classes sociais e profissionais, espíritos, na área do direito e do que mais exista no mundo" (2). Um dos grandes defensores dessa abordagem na atualidade, com algumas modificações, é o teólogo Douglas Moo(3).

2. A Perspectiva Reformada: Diferentemente de Lutero, Calvino não formulou seu sistema nem dividiu os testamentos entre Lei e Evangelho, mas via uma continuidade entre a Lei de Moisés, em especial aos dez mandamentos, e o evangelho, pois tanto a entrega da Lei de Deus no Sinai e o ensino do Senhor Jesus foram dados dentro do mesmo escopo da Aliança, a Aliança da Graça, sendo que o Evangelho é o pico dessa aliança. A evidência entre a continuidade essencial entre a lei e o evangelho é porque tanto no período da entrega da Lei houve antes redenção (Cf. Êx 20.2), quanto no tempo da graça houve Lei (Tg 1.25; 2.12), o próprio Paulo não anulou a Lei (Rm 3.31). Portanto, a Lei moral de Deus não foi simplesmente expressa na dispensação do antigo concerto, nem tampouco é uma das expressões da Lei moral eterna de Deus para uma nação específica, mas é em seu conteúdo moral, A própria Lei de Deus expressa de maneira clara nos Dez mandamentos. Não se quer dizer com isso que não houve descontinuidade, pois a lei possui três aspectos: o aspecto moral, que é o cerne da Lei e expresso nos Dez mandamentos, os aspectos cerimonial e civil são expressões da Lei de Deus quanto a situação específica da comunidade de Israel, e possuem princípios importantes, mas não necessitam ser aplicados em sua totalidade nem diretamente pelos crentes atuais, ao contrário da Lei moral(4). O teólogo reformado Philip Ryken afirma: "Ainda devemos guardar a Lei hoje? Claro que devemos! Como a Bíblia demonstra do começo ao fim, os Dez Mandamentos nos mostram a maneira certa de viver. Estão fundamentados na justiça de Deus, o que explica porque mesmo o Novo Testamento tem tantas coisas positivas sobre a lei de Deus...como crentes em Jesus Cristo, ainda precisamos guardar a Lei de Deus? precisamos. A lei moral expressa a vontade perfeita e justa de Deus para a nossa vida. Jesus, então, nos ordena que a guardemos, não como uma maneira de ficarmos bem com Deus, mas como forma de agradarmos a Deus, que nos corrigiu com Ele" (5). O célebre teólogo reformado Ernest Kevan ainda é mais enfático: "A Lei de Moisés é nada menos do que a Lei de Cristo"(6). A perspectiva reformada é endossada por muitos cristãos, como os presbiterianos e batistas. Essa visão é essencialmente a mesma dos grupos arminianos e arminianos/wesleyanos, com a diferença é que este últimos possui mais as ênfases de santidade de Wesley, onde focaliza a motivação e o amor no servir a Deus.

3.A Perspectiva Dispensacionalista: A perspectiva dispensacionalista de certa forma retoma o pensamento luterano, pois encontra muitos pontos de apoio com este no que tange ao papel da Lei inclusive esboçando argumentos semelhantes, porém com elementos distintos devido a sistema teológico: o elemento básico e fundamental da teologia dispensacionalista é diferença entre Israel e a igreja. Charles Ryrie diz que esta "é a prova teológica mais básica de uma pessoa ser ou não dispensacionalista, e sem dúvida é a mais prática e conclusiva"(7) Ao contrario do que prega a teologia reformada, israel não se constitui a igreja do Antigo Testamento, mas sim o povo de Deus em uma dispensação própria, com regulamentações distintas da igreja, que era o mistério de Deus que foi revelado somente na dispensação presente (Ef 1.9-13), um povo que congrega tanto judeus como gentios. Por isso, a Lei de Moisés (incluindo sua forma nos dez mandamentos) foram entregues sobre a vigência do Pacto feito com os israelitas, pacto este que foi quebrado por eles que falharam em ser governados pela Lei. O crente na atual dispensação não é mais guiado pela Lei, mas pela graça de Deus em Cristo na dispensação atual. Não se quer dizer com isso que não havia graça no At nem que  a salvação fosse pelas obras na antiga dispensação, mas como afirma Ryrie:"as Escrituras dizem que sua vinda [de Cristo] demonstrou a graça de Deus com tamanha magnitude que todas as demonstrações anteriores eram como se nada fossem", e acrescenta:  " a lei deveria conduzir os israelitas a Cristo. No cumprimento desses propósitos pelos quais foi dada a Lei, a graça não foi, e para os propósitos a lei foi 'acrescentada ao lado' da promessa a fim de desenvolver o relacionamento de Israel com Deus naquele tempo" (8).   

Algo comumente afirmado por teólogos não dispensacionais é que  o dispensacionalismo ensina duas formas de salvação, algo definido como mito por Wayne Strickland: "é importante observar que o dispensacionalismo nunca  defendeu a posição que há dois caminhos de salvação: a lei mosaica para as pessoas do At e a fé para as pessoas do NT"(9). O que há na verdade são duas dispensações, uma onde o povo de Deus é guiado pela Lei de Moisés, essa dispensação e a lei de Moisés findam quando Cristo veio, e agora, o cristão é guiado pela Lei de Cristo, que encontra correspondência  na lei de Moisés por estar refletida na vontade soberana de Deus. A Lei de Moisés é unificada, não podendo, portanto, ser dividida em categorias. Aqui o pensamento dispensacional encontra reflexo no pensamento Luterano. A diferença, é que para os dispensacionalistas em sua maioria, o milênio vindouro apresentará novamente elementos da Lei mosaica, como o sacrifício de animais (embora de maneira memorial), pois ali Deus estará cumprindo suas promessas no que tange a nação de Israel. Essa visão é adotada por várias denominações que seguem uma escatologia dispensacionalista, como muitas igrejas batistas, congregacionais, dos irmãos e pentecostais.

Basicamente, estas são as três visões principais endossadas pelos cristão evangélicos. No contexto assembleiano, era muito comum uma forma de dispensacionalismo popular acerca da Lei, dizendo que hoje estaríamos no tempo da graça, sendo salvos pela fé (ainda que, de maneira interessante, não desestimulasse a santidade e até mesmo não impediu o legalismo). Hoje tal visão desvaeceu e existe em pequenos nichos. Todavia, a assembleia de Deus mantém uma perspectiva da santificação bem semelhante a reformada, porém no que tange ao papel da Lei, encontra-se dividida, sendo porém sua maioria possui uma visão dispensacionalista, visão esta que é adotada pelo comentarista da revista. Porém, uma estrutura reformada no meio assembleiano parece ter recebido ênfase maior na denominação, algo que se dá pelo fato de sempre haver um considerável reverência pelos dez mandamentos no meio assembleiano. Talvez ambas as visões compartilhem espaço no meio pentecostal. Independentemente disso, é interessante se aprofundar nestas questões, visando aperfeiçoar nossa visão bíblica acerca da obediência a Lei de Deus em nossos dias, que deve ser o desejo de todo aquele que segue e ama genuinamente o Senhor (Salmo 1.1-2).

Soli Deo Gloria

Notas:

1. Uma excelente obra ainda disponível em livrarias é "Lei e Evangelho: Cinco pontos de Vista", publicada pela Editora Vida.
2.LUTERO, Martim. Catecismo Maior. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2012. p. 26.
3. Douglas Moo é um renomado teólogo Luterano conservador, é um dos contribuidores da obra Lei e Evangelho, anteriormente citada. Moo também escreveu um artigo falando acerca da descontinuidade da Lei e Evangelho na obra "Continuidade e Descontinuidade: perspectivas sobre o relacionamento do Antigo e Novo Testamento", publicada pela editora Hagnos.
4. Alguns teólogos reformados defendem a validade da Lei civil na sociedade hoje, ainda que mediada por Cristo. Eles são conhecidos como teonomistas ou reconstrucionistas. Desse grupo se destacaram Greg Bahnsen (falecido em 1995) e Rousas Rooshdoony (falecido em 2001) . Na atualidade, Kenneth Gentry é um defensor de destaque.
5. RYKEN, Philip Graham. Os Dez mandamentos para os Dias de Hoje. Rio de janeiro: CPAD, 2014. p. 21.
6. KEVAN, Ernest. A Lei Moral. São Paulo: Os Puritanos, 2000, p. 7.
7. RYRIE, Charles C. Dispensacionalismo: ajuda ou heresia?. Mogi das Cruzes: ABECAR, 2004. p.49.
8. Ibid.  p. 67, 133.
9. GUNDRY, Stalney (org). Lei e Evangelho: 5 pontos de Vista. 2° ed. São Paulo: Editora Vida, 2013.p. 255.

Nenhum comentário: